MATERIAIS… MATERIALIDADES

Achei bonito o menino dormindo entre os livros. Não, estante não é lugar de dormir. E todo mundo sabe das coisas que faço questão. Mas o menino…

O menino é diferente. Ele precisa de condições especiais. Ele precisa se equilibrar, ele está sempre na corda bamba. E nós sempre tentando entender que lado da corda ele está, todo dia.

De alguma forma, os livros conectam o menino. Ele se cobre com eles. Se esconde atrás deles. Fala com eles. E quando está nervoso, rasga eles ( a gente conserta depois, mas nem sempre dá pra impedir que ele rasgue… O menino é rápido. ).

A gente tem uma estante linda, toda colorida. A gente tem livros e histórias incríveis, lindas e acolhedoras. A gente tem livros bonitos e cheios de figuras maravilhosas. Todo esse material, que eu juntei em mais de 20 anos, aqui. O menino não sabe, mas ele intui. Ali tem livro de 50, 60 anos atrás. Ali tem livros atualíssimos. Livros caros, livros raros, livros grandes e pequenos, sobre tudo quanto é assunto ( quando falta um livro de algum assunto, a gente vai atrás – outro dia, outro menino disse que ali não tinha nenhum livro sobre futebol; agora tem ).

O menino entende, de alguma forma, a força desse material todo, mais que qualquer outra menina ou menino da sala.

É lá, no meio dos livros, que o menino sem palavras vai encontrar conforto. Os livros, a estante, são materiais. Uma criança achar conforto e dormir entre os livros, com toda força simbólica que isso tem, é materialidade – o material abraçando, ninando, cobrindo, carregando o menino pra um lugar tranquilo e seguro, onde ele pode dormir até se conectar de novo com a gente.

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Achei lindo a menina brincando com a boneca que parece com ela. São tantas bonecas, mas essa… Ah, essa é especial. Essa parece com ela, e foi feita por mãos que são como as mãos dela, mãos e ideias da gente dela. É só uma boneca, mas para a menina… Para a menina era uma filha, ou uma mãe… Era ela mesma ali. Sendo penteada, ouvida, falada, acarinhada, abraçada, ninada, ganhando luz e vida – a boneca dando tudo isso pra menina, e ao mesmo tempo ganhando tudo isso dela.

A menina ter uma boneca indígena, sendo indígena, na escola que optou por acolhê-la… É lindo e emocionante de ver. A boneca, é material. Material de qualidade.

A menina poder se ver, e construir e reafirmar pedaços de sua identidade, é materialidade – o material vai buscar lá dentro da menina uma coisa que só ele, o material, pode alcançar… Algo entre a menina e a boneca.

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Achei tão legal a criançada vir querer aprender a usar a beyblade, esse pião modernoso.

Eu girava pião na rua, aquele, feito de madeira, com fieira e tudo. Meu pai também girou, e o pai dele, eu tenho certeza, girou alguma coisa parecida, porque parece que tem algo muito forte nas crianças de vários tempos, e vários lugares e culturas que as faz girarem uma coisa, e se encantarem com a rapidez, a tecnologia e a estética desse giro.

Mas a beyblade, ela não só gira… Ela brilha no escuro, ela tem suporte e arena, ela é linda! E as crianças querem muito não só ver a beyblade girar, mas fazê-la girar.

Pra fazer a beyblade girar, tem que ter habilidade. Tem que enfiar o puxador no apoio, até o fim; e dos quatro lados que pode entrar… Só tem um lado que dá certo. Tem que encaixar o apoio na beyblade, bem direitinho. E tem que equilibrar, deixá-la de pé e puxar de uma vez só, tomando cuidado pra não prender, senão não vai.

Eu ensinei uma vez só, falei dos truques e disse que tinha que tomar cuidado para não arrebentar com a beyblade. E depois, as crianças começaram suas tentativas. Tem as que já sabiam, tem as que aprenderam logo de cara, tem as que não estavam conseguindo e vinham chorosinhas pedir ajuda. E tem as muitas que foram ali, ensinando pras outras, o que tinham aprendido, e assim a sala toda estava girando a beyblade em alguns minutos.

Toda essa habilidade, de aprender, ensinar, comunicar, enfiar no buraquinho certo, equilibrar, puxar, consertar as que quebram… Todas as perguntas – por que ela para quando bate na outra, por que ela brilha, por que ela gira tanto quando está no chão e nem tanto quando está na mesa, por que isso, por que aquilo… Tudo isso só estava acontecendo, porque tinha a beyblade. A beyblade fez várias pontes entre o que as crianças sabiam, o que queriam aprender e o que elas conseguiam aprender – Vigotski e suas zonas de desenvolvimento iriam ficar felizes e aplaudir as crianças, agora.

A beyblade é material. Aprender, desenvolver habilidades, se sentir participando de uma cultura de infância e fazer essa roda de conhecimento girar… É materialidade.

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Material é coisa. Qualquer coisa. Coisa que se vê, se pega, se mede, tem peso, cheiro, tamanho, cor, propriedades ( e alguns até dizem que essas propriedades é que são materialidades, mas… Sei não. 🤔

Um tablet e um graveto, ambos são materiais.

Materialidade é o que a gente consegue fazer com um material, sendo gente… Gente que tem cultura, capacidade inventiva, cognição, sociabilidade, desejo.

Achei bonito poder pensar hoje sobre essa ponte entre o material e o conhecimento, essa ponte chamada materialidade. As crianças sempre me dão tudo que eu preciso pra entender esses termos pedagógicos, que vivem mudando de jeito. Ainda bem que essa capacidade das crianças, a de me ensinar Pedagogia, não muda nunca.

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MUDANÇA

A partir de 2011, este blog entra como parte integrante de um outro, feito em conjunto com as educadoras da EMEI Jardim Monte Belo, na categoria “Inclusão”. Quem passa aqui, pode ir correndo pra lá!

http://giracirandinha.wordpress.com

Espero vocês lá!

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ELES SERÃO MELHORES

Há esperança para o mundo. Digo isso olhando as crianças. Eles têm apenas 3, 4 anos. E embora eu saiba que, como pregava a linda canção do Louis Armstrong, o mundo é maravilhoso e eles saberão muito mais do que eu jamais poderei saber, algo é certo pra mim – eles farão do mundo um lugar melhor pra se viver.

Os meninos serão homens melhores, porque agora brincam com bonecas, panelinhas, perucas e casinha como qualquer menina. Eles abraçarão melhor os filhos porque ninam os bebês de brinquedo sem culpa, e dividirão as tarefas de casa com as meninas, que por sua vez, também serão mulheres melhores. Elas querem ser motoristas, médicas, querem empurrrar o carrinho, e não aceitam mais ficar de fora de nenhuma brincadeira só por serem meninas – sem deixar de adorar batom e maquiagem.

Eles serão cidadãos melhores porque não aceitam ordens absurdas sem questionar os adultos, e perguntam sobre tudo que têm dúvida. Serão melhores por entender a importância de aprender a amarrar o próprio sapato, tirar a própria blusa, resolver os próprios conflitos, tomar decisões e fazer escolhas. Serão mais ordeiros por terem muitas coisas pra organizar e guardar, e por, mesmo sendo tão pequenos, terem acesso à informações, livros, computadores, documentários, boa música, arte e cultura, internet e todo tipo de esporte.

Mas quando vejo as crianças agindo em relação ao Gustavo, vejo que ele serão MUITO melhores que nós.

Convivo tanto com eles que às vezes esqueço o quanto são pequenos… O quanto ainda têm pela frente. São criancinhas de apenas três anos, cheias de vontades individuais, egocêntricas, ainda tentando se entender no mundo. Personalidades em choque relacional, pessoas inteiras que até pouco tempo não conheciam muito mais que o bordado da barra da saia da mãe. Crianças carentes de atenção, de orientação, de descoberta, de carinho, de mim… Ávidas pelo mundo e tudo que ele tem, capazes de aprender muito, e com uma velocidade espantosa. E, ainda assim, tão pequenos e envolvidos em si mesmos, eles conseguem olhar para as necessidades do outro, com sensibiliade espantosa.

Eles conseguem esperar a vez sem empurrar. Conseguem pegar a mochila do amigo. Conseguem dar prioridade na fila do lanche. Conseguem ajudar a descer e subir da cadeira. Conseguem reduzir o ritmo de uma brincadeira para que todos possam brincar. Tratam com muito respeito o fato de um amigo não andar, não falar ou usar fraldas. Conseguem perceber quando ele precisa de água, quando não está sentado confortavelmente, quando  não alcança alguma coisa. E estão sempre lá pra ajudar.

Quando eu era criança, era feio ser diferente. Eu nunca convivi com nenhuma criança deficiente na escola. Quem era negro, gordo, quem usava óculos, ou tinha uma nacionalidade diferente, quem era mais pobre ou tinha pais esquisitos, quem era adotado ou nordestino, todas essas pessoas eram excluídas e agrupadas à parte, como se fosse feio não ser do jeito ideal. E isso causava tristeza, agressão, apatia, dor, raiva.

Alguém diria, o mundo vai estragá-los. Sim, sempre estraga, e isso é inevitável. Há um lado escuro no ser humano que é assustador.

Mas continuo crendo que eles ainda serão melhores. E isso me dá força pra ir continuar trabalhando todas as manhãs.

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UMA RELAÇÃO DELICADA

Todo mundo tem sonhos para a própria vida. E todo mundo precisa dividir esses sonhos com as pessoas que ama. E é nesse clima, de sonho, que geralmente nascem as crianças. O berço de um bebê é montado com muita expectativa de uma criança ideal, imaginada sem defeitos, sem problemas, sem máculas.

Costuma ser um grande choque para uma família ter que deitar nesse berço de sonho uma criança com limitações. Muito choro, muita dúvida, muita negação, superproteção, sentimento de fracasso, muita inconformidade vem. Já ouvi tantos relatos sobre isso. Gente que teve que aprender, de um jeito mais rápido e mais profundo, que amar alguém é isso aí mesmo: olhar a pessoa que está ali, na sua frente, como ela é, e como dizia o Cazuza, não “ficar esperando alguém que caiba no seu sonho”. Gente que teve que aceitar, transpor, superar a limitação, e nisso aprender a lidar com uma vida diferente da maioria das pessoas. Uma vida feita de lutas, de lágrimas, de conquista de espaço e dignidade em uma sociedade estranha, e muitas vezes cruel.

Nesses anos todos acabei lidando com muitas famílias. Mães, pais, responsáveis, irmãos mais velhos, tios e tias que chegam até nós e dividem conosco angústias, dúvidas, acertos e errros. Quando o vínculo entre escola e família acontece de maneira sadia, percebo que os pais e mães confiam em nós. Não só como alguém que cuida direitinho do filho ou filha deles por algumas horas, mas como alguém que pode dividir impressões e idéias e ajudar em um momento de dificuldade, como um parceiro que educa e troca princípios fundamentais na educação dos filhos. Quando as coisas vão bem, alcançamos com as famílias conversas bem além do “cuidado com a mochila do seu filho”; vamos até às questões conceituais que podem mudar o curso do rio da vida de uma pessoa.

Eu admiro muito a família do Gustavo. Pai e mãe dele são pessoas muito, muito corajosas. Tiveram coragem de peitar a insegurança pra deixar o filho participar de um ambiente estranho, com pessoas estranhas. O filho de quem eles têm que cuidar tanto, a quem querem proteger integralmente. E não deve ser nada fácil fazer isso. Sábado passado foi nossa festa junina. E lá estavam eles, radiantes, vendo o filho exposto e feliz, em uma dança coletiva. Foi emocionante para todos nós.

Nas poucas vezes em que conversamos formalmente, percebi que os pais do Gustavo, especialmente sua mãe, eram pessoas fáceis de se lidar, muito esperançosos na melhoria de sua condição atual através do esforço diário de estimulação. E percebi o quanto tem que ser sensível e delicada a nossa postura com famílias das crianças deficientes. Normalmente, eles já chegam muito machucados pela vida. Alguns parecem pedir desculpas por estarem incomodando ( idéia que é reforçada por muitas escolas, públicas e privadas, que tratam essas pessoas com descaso revoltante ). Outras reagem agressivamente a tudo. Outras simplesmente são ausentes… E muitas delas têm histórias tristes pra contar sobre preconceito, discriminação, dificuldades práticas com a questão da deficiência.

Acredito que acolher as famílias, ouvi-las, partilhar de seus anseios, combinar coisas que ajudem a criança, encontrar pontos em comum no projeto de educação que sonhamos para ela – tudo isso ajuda, e muito, o pai e a mãe de uma criança, seja ela como for, a enxergar em nós um bom profissional de educação.

Mas é mais do que isso. Quando converso com os pais do Gustavo, procuro dividir – e a palavra é essa, dividir – com ela as minhas alegrias, medos e expectativas sobre ele. Ali, conversam adultos que querem a mesma coisa – o pleno desenvolvimento e alegria de um ser humano muito querido. E isso me faz mais que uma professora aos olhos deles… Me faz humana. E o Gustavo só tem a ganhar com nosso contato delicado e respeitoso.

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APOIO

Gustavo faz tratamento na AACD uma vez por semana, e há possibilidades, com muito treino, estimulação, e principalmente fé, que um dia ele possa andar sem precisar da ajuda de ninguém. Por isso, fiz a opção de usar o mínimo possível a cadeira de rodas com ele. Para ir de um lado pro outro, ele engatinha, mas também vai no meu colo, ou tentando andar enquanto eu o apóio pelos braços, impulsionando-o com as minhas pernas. Embora isso tome um tempo a mais, embora eu tenha outras 26 criancinhas bem danadas sob minha supervisão que nem sempre têm paciência de esperar, e embora eu venha tendo dores nas costas bem fortes à noite, tem valido a pena, por vários motivos, estimulá-lo assim.

Outro dia, ao irmos caminhando até a mesa do lanche, pelo corredor da escola, eu comentei com ele que estava achando que ele estava muito mais durinho; que suas pernas pareciam mais firmes, e que os passos que ele dava também estavam mais rápidos. Ele me disse, “você não tem medo que eu caia?”. Eu disse, “não, você não tem medo de cair?”. E ele, como sempre me tirando o rebolado, respondeu, “Não… Sei que você tá atrás de mim pra me segurar, oras.”.

Na hora não disse nada, mas depois fiquei pensando que devia ter dito ao Gustavo que eu também era passível de queda, tanto quanto ele. Que minhas pernas também fraquejam, meu ânimo também cai de vez em quando, que minhas soluções e minhas ideias nem sempre funcionam, que minha saúde quase nunca está 100%. Mas que, como ele, eu continuo caminhando porque atrás de mim também tem gente segurando. Por causa desse povo todo, eu não tenho medo de cair.

Tem a Aninha, A.T.E. da escola, que me ajuda a levar o Gustavo de um lado pro outro, trocá-lo, conversa com ele, troca ideias comigo sobre as coisas que observa e que ele diz, sem nem saber o quanto é precioso todo o amor que ela coloca no trabalho que tantos outros fazem por fazer. Sem ela, com certeza eu não conseguiria.

Mas tem também a Marilene, professora auxiliar, que também me ajuda nesse contato mais próximo sempre que preciso, que me ajuda a levar o Gustavo no alto da casinha e no escorregador, ajuda a dançar e ensaiar para a festa junina; pessoa absolutamente confiável que me substitui com muita eficiência quando eu não posso ir trabalhar.

Tem as meninas da limpeza, a Elis, a Lúcia, a Geni, que estão sempre lá pra me dar uma força quando eu grito socorro, e acima de tudo, se mostram simpáticas e carinhosas, com ele e comigo. Tem a Rojane, que sorri pra nós sempre que nos vê passando pelo corredor, e também faz o lanche das crianças com carinho ( às vezes, fazendo milagre com a merenda precária que recebemos ).

Tem a Meire, coordenadora incrível, que sempre me apoia, me incentiva, vai atrás de ajuda especializada, segura a onda quando a gente fica indignada com essa estrutura doida da prefeitura, traz informações, e acima de tudo passou uma segurança imensa para os pais ao mostrar que confia no seu grupo de educadoras. Tem a Regina e a Valéria, que cuidam da gestão da escola com sensibilidade e firmeza, nos dando a segurança de estarem lá pra nos apoiar, no que der e vier.

Tem as minhas amigas e colegas professoras, a Valéria, a Dani, que sempre estão me ajudando a cuidar das crianças, e a dividir as coisas pedagógicas e afetivas do dia-a-dia, que me puxam pra cima sempre que eu penso em ficar pra baixo. Tem a Roseli e a Karina, que já me ensinaram muito quando foram professoras de outros alunos deficientes, que dividiram comigo esse momento, que tanto me ensinou e preparou, e todas as outras prôs da escola, que também têm histórias emocionantes pra contar.

Tem a Mônica e a Ana, as perueiras, que levam e trazem o Gustavo em segurança, e que compartilham e se interessam pelos avanços dele. Tem a Paula, que é eficiente e disposta secretária, que está lá pro que der e vier. Tem o pai e a mãe dele, que, apesar de tanta angústia e insegurança, confiaram em nós e me dão força todos os dias ao valorizar a escola e o nosso trabalho.

E tem a Andressa, o Vinícius, o Higor, a Laurinha, a Alexandra, a Bibi, o Alan, o outro Gustavo, e todas as outras crianças que estão sempre me ajudando a pegar mochila, limpar nariz, recolher agasalho, amarrar o tênis, pegar a cadeirinha, e principalmente a cuidar dele de um jeito amoroso e natural.

É, Gustavo, atrás de mim tem uma equipe me segurando. Pessoas bem intencionadas, que me sustentam, que me apoiam, do mesmo jeito que eu faço com você. Elas não são como uma cadeira de rodas, nem como uma muleta, frias e sempre iguais. Elas se envolvem comigo e com você. Sem essa equipe maravilhosa, da qual eu tenho orgulho e com quem tenho enorme prazer e tranquilidade de trabalhar, nós dois estaríamos mais lentos, mais tristes e menos motivados. Agradeço a todas e todos a força e o carinho. E sei que você, se pudesse ler o que estou escrevendo agora, agradeceria também. Por causa de todos eles, nós não caímos. E vamos andar cada vez mais rápido. 🙂

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TODOS SÃO INCLUÍDOS

Toda vez que a palavra inclusão é mencionada no ambiente escolar, logo imaginamos “incluir” alguém com uma deficiência explícita. Pensamos em alguém com cadeiras de rodas, alguém com um transtorno mental ou psíquico, alguém que não ouve, não fala ou não escuta bem e que precisará de ajuda extra para conviver e aprender em um ambiente com outras pessoas ditas “normais”.

Toda essa fantasia em torno da deficiência torna mais difícil a discussão e o amadurecimento de educadores e famílias. Minha experiência com o Gustavo me fez acordar para uma realidade – a diferença ( seja ela uma deficiência, uma qualidade, ou simplesmente uma característica ) faz parte do humano. E por isso, todos, em algum momento de nossas vidas, precisamos ser incluídos.

Fiquei pensando nas centenas de crianças que cruzaram comigo nesta vida. Cada um era de um jeito, cada um me via de um jeito, para cada um dei coisas diferentes de mim, de cada um recebi coisas diferentes. Tímidos, agressivos, falantes, inteligentes demais, arredios, desconcentrados, lunáticos, medrosos, gordinhos, magérrimos, crianças com alguma necessidade alimentar ou de saúde sutil, carentes, mimados, agitados, terríveis, abandonados, chatos, malvados, tristinhos ou alegrinhos, famílias complicadas… Cada um deles mereceu de mim um olhar especial, momentos de dedicação, uma conversa individual, um carinho diferente. O Gustavo é apenas mais um deles. Faz parte da profissão de um educador acolher a diferença, e ao mesmo tempo, incentivar o grupo a ser um grupo de verdade.

Fiquei pensando nas vezes em que eu fiquei deficiente de algo por algum motivo. E nas deficiências que tenho até hoje. Quando torci o pé e precisei de uma rampa no meu local de trabalho, pensei na vida das pessoas que usam cadeiras de roda e muletas todos os dias. Não faz muito tempo tive uma conjuntivite fortíssima, e pensei como é horrível letras tão pequenas pra indicar as coisas em quase todos os lugares, quando a gente mal consegue ver. Penso nas minhas dificuldades que não consigo resolver, nas minhas incapacidades, nas coisas que não consegui aprender. Penso nas vezes em que não fui aceita em um grupo ou lugar por não corresponder às expectativas dos outros, pré-julgada. Tudo isso doeu, mas passou. Imagino como deve ser reviver isso todos os dias, todas as horas.

Convivendo com o Gustavo, percebo que mais do que a consciência racional de uma deficiência, seja ela qual for, é preciso sensibilidade e firmeza para encará-la e transpô-la.

A verdade é que todos precisamos ser incluídos. E aí está o bonito e o difícil da coisa – se é ao nos confrontarmos com outros que nos damos conta das nossas diferenças, é também na empatia do que nos faz iguais que encontramos o conforto e a superação. E somos iguais por sermos humanos. Isso não é diferente pra nenhum de nós.

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A INCLUSÃO É UM ABRAÇO

A inclusão é um abraço.

Como todo abraço, envolve duas pessoas. Como todo abraço, envolve disposição de corpo, mente e alma. Como todo abraço, causa medo e prazer. Como todo abraço, traz conforto e aprendizado. Como todo abraço, é necessária para que continuemos crescendo como seres humanos. Como todo abraço, ela é desejável e importante. Como todo abraço, a inclusão exige de nós um olhar para o outro, a partir de nós mesmos.

Desde que comecei ouvir mais sobre a proposta ousada de trazer para a sala de aula de “crianças normais” os alunos que tinham algum tipo de deficiência – física, intelectual, psicológica – eu sabia que uma hora chegaria a minha vez.

Acompanhei, de perto e de longe, amigas que receberam em suas salas crianças e jovens com problemas auditivos, visuais, motores, cognitivos, afetivos. Vi o quanto todas elas sofreram para conseguir compreender a deficiência explícita de seus alunos, e o quanto tentaram, com tudo que podiam, fazer o melhor por essas crianças.

Acompanhei o descaso das instituições – públicas e privadas – com essa situação, deixando para as professoras e suas famílias a árdua tarefa de “dar um jeito” de praticar a inclusão a todo custo.

Acompanhei também famílias inseguras, educadores despreparados, crianças assustadas, infraestrutura precária, muito choro, muita revolta, muito estranhamento. E por tudo isso, eu tinha medo de quando chegasse minha vez de receber uma criança assim.

Este ano aconteceu. Gustavo apareceu na lista da minha sala com um asterisco, indicando que eu estaria finalmente colocada inteira nessa roda.

Na sala das crianças de 3 anos, o Gustavo chegou risonho. Antes dele, chegaram seus pais, ansiosos e com medo, mas firmes em seu propósito de oferecer a seu filho o melhor que pudessem – inclusive a experiência de ir para a escola. Antes deles, chegou minha coordenadora, parceirona de valor, com o diagnóstico em mãos – transtorno de desenvolvimento global ( termo que diz tudo e não diz nada ). Gustavo não pode andar sozinho, e todas as complicações decorrentes da dependência de não andar.

O primeiro gesto do Gustavo pra mim foi estender os braços para que eu o abraçasse, ao retirá-lo do colo de sua mãe. Uma proposta de abraço acompanhada de um sorriso imenso.

Ali eu perdi o medo, e o abracei. Não abracei só o seu corpo, mas também a idéia de estarmos juntos durante esse período, aprendendo tudo que pudéssemos aprender um com o outro.

E então eu soube que, na verdade, não estava abraçando um diferente, e sim um igual a mim.

A inclusão é um abraço… E as delícias desse abraço relato a partir de hoje aqui, neste espaço.

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